27.12.05

Duas Canções, por Moacyr Scliar

Aquela Canção é uma coletânea (Publifolha, preço média R$ 39,90) que reúne 12 autores em 176 páginas. Eles escrevem sobre 12 canções como fonte de sugestão para elaborar seus contos (onze contos em prosa e um conto-poema). Junto, vem um CD da Biscoito Fino, com músicas interpretadas por Milton Nascimento, Zelia Duncan e Maria Bethânia, entre outros. Escreve gente como Luis Fernando Verissimo, Moacyr Scliar e Glauco Mattoso.
Leia o que Moacyr Scliar escreve em Duas Canções, inspirado em Rancho Fundo, de Ary Barroso/Lamartine Babo e cantado por Elibeth Cardoso e Raphael Rabello, e nossa Maringá, de Joubert de Carvalho.

No Rancho Fundo
Ary Barroso/Lamartine Babo

No Rancho Fundo
Bem pra lá do fim do mundo
Onde a dor e a saudade
Contam coisa da cidade.

No Rancho Fundo
De olhar triste e profundo
Um moreno conta as mágoas
Tendo os olhos rasos d’água.

Pobre moreno
Que de tarde no sereno
Espera a lua no terreiro
Tendo um cigarro
por companheiro.

Sem um aceno
Ele pega na viola
E a lua por esmola
Vem pro quintal desse moreno.

No Rancho Fundo
Bem pra lá do fim do mundo
Nunca mais houve alegria
Nem de noite, nem de dia.

Os arvoredos
Já não contam mais segredos
E a última palmeira
Já morreu na cordilheira.

Os passarinhos
Internaram-se nos ninhos
De tão triste essa tristeza
Enche de trevas a natureza.

Tudo por quê?
Só por causa do moreno
Que era grande, hoje é pequeno
Para uma casa de sapê.

Se Deus soubesse
Da tristeza lá da serra
Mandaria lá pra cima
Todo amor que há na terra.

Porque o moreno
Vive louco de saudade
Só por causa do veneno
Das mulheres da cidade.

Ele que era
O cantor da primavera
Que até fez do Rancho Fundo
O céu melhor que há no mundo.

O sol queimando
Se uma flor lá desabrocha
A montanha vai gelando
Lembrando o aroma da
cabrocha!

Duas Canções
Moacyr Scliar

Não era exatamente no fim do mundo, mas era quase: um lugar perdido lá no interior da Paraíba, a mais de vinte quilômetros da cidade mais próxima, Pombal, e para a qual o único acesso era uma estradinha de terra, intransitável depois de qualquer chuva mais forte (só que chuva na região era raridade). No meio da pequena propriedade — três ou quatro hectares de uma terra ingrata — ficava o rancho, uma casinha de sapê coberta com folhas de palmeira. Que abrigava, ainda que precariamente, um único morador.

Chamava-se Napoleão. Nome pomposo demais para um rapaz magrinho, moreno, desmilingüido, desdentado. Mas representava a esperança de seu pai, já falecido, que ao batizá-lo assim pensara num futuro glorioso para o filho. Vã esperança, naturalmente. Como o pai, Napoleão criara-se na roça; como o pai, e ao lado dele, trabalhava na lavoura desde pequeno, e sempre de sol a sol. Como o pai, freqüentara a escola, que ficava a mais de dez quilômetros, apenas por um breve período.
Como o pai, resignava-se a seu destino (“É a vontade de Deus, o que se há de fazer?”), mas, como o pai, era um sonhador: um dia sua vida mudaria, as coisas melhorariam, ele seria um vitorioso.
Esse dia não chegava nunca. Precocemente envelhecidos, os pais morreram; e os irmãos, os dois que sobravam (outros dois haviam falecido ainda crianças), recusaram-se a continuar ali, “naquele buraco”, e, como tantos outros, partiram para São Paulo. Bem que insistiram — vem com a gente, Napoleão, isto aqui não tem futuro —, mas ele recusou. Alguém tem de ficar, disse, com o sorriso resignado que era a sua marca registrada, afinal esse rancho foi de nossos pais, de nossos avós, temos obrigação com essa terra.
Por causa dessa obrigação ele ali ficou, sozinho, no Rancho Fundo. Levantava com o nascer do sol e ia trabalhar a terra.
Fazia a sua própria comida, muito simples, muito escassa, lavava as próprias roupas, remendava-as quando necessário. E, tão logo escurecia, ia dormir. Fazer o quê? No rancho não havia tevê, nem sequer rádio. Livros, ele tinha uns dois ou três, da época da escola, mas não sentia vontade de lê-los. E assim ia vivendo, dando graças a Deus por ter razoável saúde.
Só ficou preocupado quando surpreendeu-se falando sozinho. Falando, não, resmungando. Queixando-se da vida, da terra seca. Será que estou ficando maluco, perguntava-se, preocupado, e tinha motivos para isso: sua avó começara assim, falando sozinha, e terminara no hospício. Pensou em falar com o padre da vila próxima, seguindo o conselho que a mãe lhe dera muitas vezes: se você ficar aperreado, meu filho, procure o padre Inácio. Mas temia que o sacerdote lhe dissesse algo como “é isso que dá morar sozinho”, “você tem de sair daquele rancho antes que fique completamente louco”.
Estava nesse dilema quando de repente se lembrou do violão. Pertencera a seu avô materno e era guardado pela mãe como relíquia. Ali estava, no baú, cuidadosamente enrolado
numa velha toalha bordada. Ele apanhou-o. Estava muito bem conservado, com todas as cordas — até havia algumas de reserva.
Claro, não sabia tocar, ninguém lhe ensinara, mas tempo não lhe faltaria para aprender por si mesmo; como o avô, aliás, que, segundo dizia a mãe, tinha uma notável vocação musical.
A partir daquele dia passou a ter uma nova ocupação: todas as tardes, quando o sol caía, punha-se a dedilhar o instrumento.

De início, só arrancava dele sons lamentavelmente desafinados; com o tempo, porém, e graças a um talento até então desconhecido para ele próprio, começou a tocar as modinhas da região, cantando baixinho, numa voz fraca e chorosa. Que, no entanto, mal ocultava uma alegria: já não precisava falar sozinho, tinha o violão por companheiro. O único problema é que, sendo seu repertório limitado, acabou cansando de entoar as mesmas canções. E aí uma idéia lhe ocorreu: resolveu compor uma música. Cujo título lhe ocorreu de imediato: “No Rancho Fundo”. Como, de imediato, lhe ocorreu a frase seguinte: “Bem pra lá do fim do mundo”. Passados alguns dias, surgiram mais dois versos: “Onde a dor e a saudade/contam coisas da cidade”.
E aí parou, e já não sabia mais prosseguir. O que deixou-o inquieto. Era como se a letra, em verdade, não tivesse saído de sua cabeça, mas sim tivesse vindo como uma mensagem. Mensagem de quê? Mensagem de onde? Napoleão precisava descobrir. Descobrir o quê? Descobrir o que eram as coisas da cidade. Qual cidade? Pombal, decerto. Não havia outra cidade por ali.
Aí surgiu uma boa razão para ir até lá: o concurso de violeiros, que a prefeitura de Pombal organizava todos os anos. Tímido, Napoleão jamais pensaria em participar de uma coisa
desse tipo; agora, porém, uma voz misteriosa — talvez a mesma que lhe assoprara os versos da canção — dizia-lhe que ele tinha de ir lá.

Foi. O concurso realizava-se na praça central, na qual fora instalado um pequeno palanque. Ali iam se apresentando os violeiros, a maioria deles já conhecida dos tristezenses.

Chegou a vez de Napoleão, que estava nervoso e chegou até a se atrapalhar com o violão, o que provocou risinhos, verdade que simpáticos. Mas quando começou a cantar fez-se silêncio. Porque estava inspirado, o moreno, inspirado como nunca.
As canções que entoava brotavam-lhe do fundo da alma e provocaram uma chuva de aplausos. A comissão julgadora não teve qualquer dificuldade em dar-lhe o prêmio. Convidaram-no para comemorar no botequim da praça. E foi nesse botequim que ele conheceu a cabocla Maria do Ingá ou Maringá, como todos a chamavam. Era muito linda, essa cabocla. Grandes olhos escuros, cabelos negros, uma boca bem desenhada — linda, linda. Napoleão nunca tinha tido namorada. Na verdade, seus contatos com mulher eram poucos; de vez em quando visitava a viúva Dorotéia, dona do rancho ao lado do seu, uma mulher quarentona, feia, mas vidrada em homem. Napoleão não era o único a ir lá e muitas vezes passava pelo vexame de ser mandando embora, porque a viúva já estava com alguém. Por outro lado, a viúva não era de muita conversa; mandava que ele tirasse a roupa, deitasse junto com ela, e pronto: aquela era a maneira pela qual Napoleão podia tirar o atraso.
Agora, porém, era diferente. Agora ele não podia tirar os olhos da cabocla Maringá – porque estava apaixonado, coisa que nunca lhe acontecera antes. Tão arrebatado ficou que teve ate coragem de se levantar e ir sentar junto dela, o que causou assombro – e constrangimento. Napoleão não sabia disso, mas a cabocla Maringá não era bem-vista na cidade: volúvel, trocava de namorado a todo instante. No momento estava vivendo com o caboclo Ramão, mas considerando que este não tinha qualquer talento musical, deu-lhe o fora sem a menor cerimônia e começou a namorar o Napoleão. Não demorou muito ele propôs que fossem morar juntos no Rancho Fundo. Bem pra lá do fim do mundo, ficariam os dois num ninho de amor, ele entoando inspiradas melodias.
A cabocla Maringá aceitou. Ser proprietária rural era uma coisa com a qual sonhava desde a infância. Logo, porém, deu-se conta de que as coisas não eram bem como tinha imaginado.
Tinha de cuidar do rancho, fazer a comida, lavar a roupa. Não havia canção, por mais sentimental que fosse, capaz de compensar a trabalheira. Alem disso, havia uma seca terrível na região, e ate fome eles já estavam passando.
A cabocla Maringá decidiu partir. Um dia, enquanto Napoleão dormia, ela saiu sem que ele percebesse, foi até a cidade e embarcou num caminhão pau-de-arara que levava retirantes da seca para o Sul. E já no caminhão ela aprontou; todas as noites dormia com outro. Naquela leva era a retirante que mais dava o que falar. Quem ficava indignado com aquelas cenas era o caboclo Gumercindo, irmão de Ramão, que também ia para o Sul. Um dia, quando o caminhão parou à beira da estrada para que os retirantes descansassem um pouco, ele, engolindo o orgulho, foi falar com a cabocla Maringá. Não esqueça, disse, do caboclo que ficou lá em Pombal, chorando por você.
A cabocla Maringá riu. Simplesmente riu.

Maringá
Joubert de Carvalho

Foi numa leva que a cabocla Maringá
ficou sendo a retirante
que mais dava o que falar...
E, junto dela
veio alguém que suplicou
pra que nunca se esquecesse
de um caboclo que ficou...
Maringá, Maringá!
Depois que tu partiste
tudo aqui ficou tão triste
que eu garrei a maginá...
Maringá, Maringá!
para haver felicidade
preciso que a saudade
vá bater noutro lugá...
Maringá, Maringá!
volta aqui pro meu sertão
pra de novo o coração
de um caboclo assucegá...
Antigamente uma alegria sem igual
dominava aquela gente
da cidade de Pombal
mas veio a seca, toda a chuva
foi-se embora
só restando, então, as águas
dos meus olhos quando chora...

Gumercindo puxou a faca e matou-a ali mesmo, na frente dos outros retirantes. Feito o que, meteu-se no mato e nunca mais foi visto. Os retirantes enterraram a cabocla Maringá na beira da estrada e seguiram viagem. Depois de um tempo ninguém mais pensava nela, a nao ser o moreno Napoleão e o caboclo Ramão.
Assim deveria terminar a história, mas vocês querem um final feliz, não é? Vocês estão sempre querendo um final feliz.
Se não há final feliz vocês ficam resmungando, falando mal, querendo o dinheiro de volta. Pois então aqui vai um final feliz: Frustrado com o que tinha acontecido, Napoleão começou a plantar fumo, que lhe rendia uma boa grana. Com o dinheiro, foi comprando outras fazendas na região; plantando fumo, e também soja e algodão, ficou milionário. Hoje mora em São Paulo, casado com uma mulher belíssima. Gostaram deste final? Ah, não gostaram? Então aqui vai outro: Napoleão conheceu um investidor que andava em busca de novos projetos. Instalaram no Rancho Fundo um hotel-fazenda que fez o maior sucesso, atraindo inclusive europeus. Napoleão casou com uma francesa e esta muito feliz. E deste, gostaram?
Ah, também não gostaram. Vocês são exigentes mesmo, hein?
Bota exigência nisso. Aqui esta um outro final: Apesar da desgraça, ou talvez por causa dela, Napoleão continuou cantando, e cada vez melhor, com mais sentimento, arrancando lágrimas daqueles que o ouviam. Logo estava nas rádios; e logo seus CDs estavam vendendo como pão quente, tanto que ele criou sua própria gravadora, a Maringá. Investiu o dinheiro que ganhava no próprio Rancho Fundo. Também comprou terras; e um dos maiores plantadores de soja da região.
Ramão e gerente. Enfim, o Rancho Fundo já não fica bem pra lá do fim do mundo. Ou talvez fique, mas a verdade e que o fim do mundo não e tão ruim quanto parece.

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