7.2.07

Palavras talvez vãs

Por AUGUSTO MARZAGÃO

“Ser claro é uma gentileza com o leitor”
Celso Cunha, filólogo mineiro

Saber escrever é importante para o jornalista, mas não é fundamental. O jornalista, na verdade, não escreve; o jornalista redige. Quem escreve é o escritor, e, entre o texto do escritor e o do jornalista, há uma funda distância, que alguns ultrapassam com facilidade e competência, mas que não é indispensável ultrapassar. Conheço excelentes jornalistas que são escritores de primeira qualidade, como conheço outros que nunca juntaram duas palavras — e sabem juntá-las como poucos — que não fosse com a finalidade única da informação jornalística. Desses, a maioria dos que tentaram ultrapassar o fosso entre as duas atividades chegaram do lado de lá com um palmo de língua de fora e o desconforto de um desempenho medíocre.
As principais diferenças que marcam e aprofundam a distância entre o escritor e o jornalista estão no vocabulário e na construção da frase. Cabe na frase do escritor tanto a magrez de Graciliano Ramos como as enxúndias de Coelho Neto ou as invencionices de Guimarães Rosa; na do jornalista, não. Seu texto deve ser objetivo, obrigatoriamente claro, acessível a um número ilimitado de leitores; seu vocabulário deve ser comedido, sem que se confunda comedimento com pobreza, como é comum confundir-se.
Fundamental para o jornalista — refiro-me principalmente ao repórter — é a sua capacidade de indagar e de ouvir. E de transformar sua indagação e o que ouviu em um texto legível, que prenda o leitor e responda sem nenhuma dúvida às suas curiosidades. Devem ser os jornalistas indagadores obsessivos. A curiosidade, que até pode ser um defeito em muitos casos, é a sua principal virtude. Nenhum jornalista deve temer que o achem aborrecido por ser um indagador insaciável. Tampouco deve hesitar diante de uma pergunta que possa parecer banal ou ingênua. Um surpreendente número de manchetes saiu de perguntas aparentemente ingênuas.
Pergunte (dirijo-me ao jovem repórter). Insista se a resposta não for convincente. Procure saber quem fez, o que fez, onde fez, quando fez, como fez e por que fez. Desdobre e multiplique cada uma dessas perguntas. Fuce, fareje, cave o mais profundamente que puder. E não cometa o pecado supremo de contentar-se com a primeira história que lhe contarem, por mais bem contada que lhe pareça. Cheque-a. Ouça uma a uma todas as pessoas envolvidas.
Também é fundamental para o jornalista saber selecionar do que apurou aquilo que de fato interessa à história que pretende contar. Muitos bons indagadores afundam na hora de escolher o que vale e o que não tem o menor valor para a compreensão da notícia. E deixam o leitor sem o essencial da informação que queriam passar. O resto é fácil.
É tranqüilo redigir a notícia (o jornalista não escreve, lembremo-nos; quem escreve é o escritor) se tiver feito uma apuração meticulosa, exaustiva, isenta. Se tiver no gravador, ou em suas anotações, as respostas às perguntas que fez. Botar na memória do computador o que garimpou leva no máximo dois a três quartos de hora, dependendo, claro, da agilidade do digitador e da capacidade da máquina. Não pensem que falo isso de ouvir dizer. Aos 22 anos estava eu, verde repórter, na redação de O Tempo, sob o comando implacável de Hermínio Saqueta, um trotskista ferrenho que, quando ouvia o nome do líder, ou ao pronunciá-lo, punha-se de pé, em posição de sentido, e espalmava a mão no peito, na altura do coração, numa reverência de devoto. Gramei todas as vicissitudes pelas quais passam os focas. Recebi descomposturas monumentais de chefes de reportagem e secretários de redação menos cordiais pelos singelos erros, embora pecados capitais, reconheço, de um lide errado, de uma apuração malfeita, de um pronome oblíquo fora do lugar, ou de um extemporâneo acento indicador de crase.
Falta dizer uma coisa antes de finalizar. A mais importante, por isso mesmo deixada para o fim: o jornalista — refiro-me, repito, ao repórter — ao redigir a notícia apurada não pode deixar-se levar pelas próprias idiossincrasias. Não se nega a ele, como cidadão, o direito de ter opinião sobre qualquer assunto. De pender para o lado que quiser. De ser democrata, bolchevista, anarquista, simpático a Chávez, a Bush, à guerra do Iraque, ao freio ou tentativa de freio à expansão comercial chinesa. O único direito que não tem é o de utilizar-se da notícia para influenciar o público do jornal para o qual trabalha — as revistas são um tanto ou quanto difusas nessa questão — com o que ele próprio pensa sobre os fatos que apurou. Sei de sobra que não é o que se observa no dia-a-dia. O que não me faz mudar de opinião. Pelo contrário: reforça a certeza de que algo está errado no reino de Guttenberg. O máximo que concedo, no caso, é reconhecer que devo estar ultrapassado.

(*) Augusto Marzagão é jornalista. Artigo publicado no Correio Braziliense de hoje

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