20.12.06

Lição de anatomia

Por LEILA JALUL:

Dizia uma amiga que as coisas se tornam maiores se vistas quando a gente é pequena. Não vou questionar isso. Nunca tive noções de topologia, nem de profundidade. Aliás, defendo a tese de que, nós, amazônicos, temos a megalomania incrustrada nos ossos. Aqui tudo é grande, inclusive o que poderia ser minúsculo. Herança natural. O Camaleão Ovado era grande.
“Ele era um rei que brincou com a sorte/ hoje ele é nada e retrata a morte.../ Ele olhou pras estrelas e disse coisas lindas/ Fez um poema prum poste, me veio lágrimas/ o que foi que fizeram com ele, não sei/ eu só sei que este pobre, este homem, foi um rei”.
Camaleão, talvez pelo poder de trasformação. Ovado, sabe Deus! Teria hérnia? Híbrido de poeta e bêbado. Bebia para poetar, ou, na melhor das hipóteses, fazia poesia para beber. Não importava a fase da lua e lá estava ele carregando seu velho saco, seguido da meninada e cravejado de impropérios.
Numa dessas madrugadas infames, contam que, no Mercado do Quinze, Camaleão foi flagrado numa relação passiva. Deve ter sido com outro pé inchado. Sei lá! Só sei que, no outro dia, estava armado o xabu. No boteco do Cabeleira, na pensão da Aretusa, só se ouvia o buxixo.
Camaleão circulava livremente. Não estava nem aí pro azar do Papa, nem queria saber quem era o Governador. Livre. Apenas. Mas existem uns cabras, espinhos de garganta, línguas soltas, sem rédeas, que não agüentam mais do que cinco minutos armazenando um segredo. Foi um desses que se vira e diz:
- Camaleão, até tu, Brutus? Como pode?
Com toda a decência, a bem do decoro e da felicidade humana, Camaleão Ovado respondeu:
- Calma, amigo, calma! Acaso com tanta sabedoria, tanta indignação, me responda: em algum dia dessa sua miserável vida, você já cagou pra dentro?
E lá se foi, com seu saco, recitando seu mais belo poema:
"Ó relógio, ó relógio, por que não páras?/ Por que insistes em marcar-me as dores?/ Se, ainda que por um momento, estancasses as horas, daria cordas em meus sentimentos/ Mas, já que insistes em marcar o tempo/ vou por um fim em todos meus lamentos.../ Ó relógio, ó relógio".

(Publico porque a história me lembra o Robô, um sujeito que freqüentava a Boca Maldita e foi capa do último "etc...". Via Altino Machado)

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