11.11.05

Sob o signo da revolução: A experiência da Ação Popular no Paraná

(A propósito da noite de autógrafos do livro, amanhã em Curitiba)
Pelo autor Reginaldo Dias:

A pesquisa que realizei, convertida em dissertação de mestrado, é uma contribuição aos estudos da experiência da nova esquerda brasileira da década de 60. Apesar de a produção tipicamente acadêmica a respeito não ser abundante, verifica-se crescente interesse pela temática relacionada à nova esquerda: tendência que vem na contracorrente destes tempos em que a revolução, no mundo da política e na academia, deixou de exercer grande poder de sedução.

Minha pesquisa seguiu um caminho pouco explorado pelos mais influentes trabalhos escritos sobre a nova esquerda, que investigaram o conjunto da experiência. Recentemente, têm surgido pesquisas que procuram aprofundar a análise de temas e de experiências específicas. Propus-me a investigar o projeto e a experiência da Ação Popular, uma das mais influentes organizações de esquerda da década de 60, com ênfase em sua atuação no Paraná.

A bibliografia a respeito da experiência da Ação Popular tem as seguintes características: por um lado, as referências estão incluídas em obras abrangentes, nas quais são pincelados, resumidamente, aspectos gerais da política da organização; por outro, os exercícios que procuram abordar especificamente a experiência da AP, não raro produzidos por ex-militantes em livros ou em coletâneas de depoimentos, resultam em disputas pela memória de sua trajetória, forma de justificar as opções mais recentes. Pode-se dizer, na falta de melhor expressão, que faltam abordagens laicas.

Num caso e no outro, há a tendência de privilegiar os fatos e as políticas globais da vida da Ação Popular. Em relação ao processo de formação da AP, por exemplo, costuma-se enfatizar, de forma quase exclusiva, o papel desempenhado pela JUC - Juventude Universitária Católica. Acentuadas na conjuntura posterior ao golpe militar, as tensões para afirmar determinada linha marxista costumam ser vistas, genericamente, como superação do cristianismo pelo marxismo. O enfoque panorâmico também costuma predominar em relação às disputas pela linha política marxista e sua consecutiva aplicação na leitura da realidade brasileira e na sedimentação de estratégias revolucionárias.

Ficam perdidas no horizonte desse tipo de análise, como procurou demonstrar a pesquisa realizada sobre a experiência da AP no Paraná, outras influências que essa organização política recebeu em seu processo de formação e em toda a sua trajetória. Mais ainda, perde-se de vista a forma assumida por essa experiência em um contexto determinado, observado o entrelaçamento da política geral da AP com práticas sedimentadas em realidades específicas.

Não foi o gosto pelo peculiar e pelo pitoresco que moveu o estabelecimento de tal recorte. Entende-se que pesquisas desse perfil podem contribuir para uma nova síntese sobre o conhecimento da experiência da esquerda brasileira. Isso porque, a despeito de suas formulações mais gerais, a práxis de cada organização constituiu-se a partir de sua inserção concreta em dadas realidades.

A aferição dos contornos dessas experiências só pode ser realizada por meio de um exercício de singularização. Essa é uma condição para que o conhecimento sobre o conjunto da experiência possa ser enriquecido e entendido - em analogia com as questões metodológicas desenvolvidas por Marx em O método da economia política- como unidade do diverso, síntese de múltiplas determinações. Entretanto, seria incoerente que um trabalho com tal objetivo realizasse, ele próprio, a nova síntese. Pode contribuir, isto sim, para que, em conjunto com outras pesquisas do mesmo perfil, essa síntese venha a ser constituída.

A escolha da Ação Popular como objeto específico de análise deve-se a fatores diversos. Trata-se de uma das mais influentes organizações do período. Fundada no começo da década de 60, a AP viveu, do início ao fim, os principais temas e experiências de sua geração. Com efeito, tendo origem em movimentos leigos da Igreja Católica, abriu-se a influências diversas e, quando se definiu pelo marxismo, ainda foi cenário de tendências diferentes acerca dos caminhos da revolução.

A Ação Popular foi, ao longo de todo o período, uma organização cuja estratégia contemplava a luta de massas e dos trabalhadores. Mesmo quando a luta armada passou a ser um objetivo de curto prazo, essa política se relacionava com as variações que a estratégia revolucionária ia determinando, com os movimentos de trabalhadores. Por fim, precisamente na região de Maringá, norte do Paraná, dirigentes da Ação Popular lideraram movimentos de trabalhadores que resultaram, em outubro de 1968, em uma tentativa de greve geral, fato praticamente desconhecido da literatura sobre o período.

A dissertação foi constituída por três capítulos. No primeiro, abordei, de forma abrangente, os caminhos da revolução brasileira, indicando as principais tendências de formulação estratégica e de relacionamento das organizações de esquerda com os movimentos de trabalhadores. Evidentemente, tal exercício exigiu que fosse delineada, em seus traços e temas principais, a conjuntura da década, na qual organizações intervieram e procuraram deflagrar o processo de revolução brasileira.

O segundo capítulo teve o objetivo de analisar, antes e depois de 64, o projeto de revolução brasileira da Ação Popular e sua experiência. Analisou-se a dinâmica de definição e redefinição desse projeto e experiência, destacando as diferentes tendências presentes no processo, as mudanças e as permanências. Esse capítulo foi constituído a partir da utilização de documentação produzida pela Ação Popular e da bibliografia acerca de sua experiência.

O terceiro, ao analisar a experiência da AP no Paraná, destacou sua implantação na região de Maringá, norte do Estado, onde liderou o citado movimento grevista. Cotejou-se a relação do projeto da AP com tendências de desenvolvimento da região e a relação de sua estratégia revolucionária com os movimentos de trabalhadores, com base em referências da historiografia marxista acerca dos movimentos sociais.

Inferiu-se que a história da AP no Paraná não seguiu, mecanicamente, a mesma trajetória da organização em nível nacional. Se os temas e tendências nacionais exerceram influência, ficou evidente que a prática concreta assumiu dimensões específicas, por conta da interseção das políticas gerais com experiências verificadas nessa realidade.

A presença da JUC foi decisiva, a exemplo do restante do País, na constituição da AP no Paraná, mas constatou-se a presença da Juventude Democrata Cristã, fortemente organizada nas entidades estudantis, fato singular na vida organização. Isso repercutiu não apenas nos embates internos, mas na própria atuação política junto ao movimento estudantil, a principal frente de intervenção política da AP paranaense no período anterior ao golpe militar de 1964.

A descontinuidade entre o período anterior e posterior ao golpe militar não se verifica apenas na evasão de antigos e na incorporação de novos militantes. Constata-se que a descontinuidade é exercida, principalmente, no que se refere à formação política. Como a adesão de marxistas independentes e de estudantes sem vínculo com o cristianismo do primeiro momento foi preponderante, a militância que se incorporou à organização após o golpe de Estado não tinha vínculos com sua história e sua identidade política não era tributária do catolicismo engajado da JUC nem do catolicismo politicamente moderado da JDC. Nesse contexto específico do Paraná, fica difícil falar, como costuma generalizar a bibliografia a respeito da AP, em superação do cristianismo pelo marxismo.

Em 1968, a AP definiu-se, no leque de referências marxistas, pelo maoísmo. Essa corrente preconizava a revolução camponesa e a “proletarização” da militância de origem pequeno-burguesa, que deveria ser inserida no mundo do trabalho, tanto rural quanto urbano. No contexto geral, muitos interpretaram, com certa razão, essa preferência pelo maoísmo como eco do cristianismo dos primeiros tempos, sobretudo porque a “proletarização” ia ao encontro das tendências igualitárias cristãs, sensíveis ao apelo de viver com e como o povo. No Paraná, entretanto, a adesão ao maoísmo não se explica em razão do passado cristão, mas de opções colocadas no campo do marxismo.

Verificou-se que a tentativa de implantação da estratégia maoísta não levou em consideração as características nem a dinâmica das estruturas sociais do norte do Paraná. Influenciada pela existência da economia cafeeira e de relações de trabalho tradicionais, tal concepção identificava a existência de estruturas semifeudais na região. Além de essas estruturas estarem distantes dessa classificação, o norte do Paraná iniciava um processo de modernização e de urbanização.

É emblemático que a ação mais eficaz de relacionamento da AP com a articulação de movimentos de trabalhadores, exemplificada na greve de outubro de 1968, tenha ocorrido na área urbana do município de Maringá, exatamente nos setores que caracterizavam o processo de modernização: setor de serviços e indústria de transformação de alimentos.

De qualquer forma, o processo grevista ocorrido em Maringá foi resultante, fundamentalmente, da singular convergência entre a estratégia da AP e a experiência que os setores que se envolveram nas mobilizações tinham. É factível supor que os movimentos pudessem ocorrer sob outra influência e direção, mas também é verdade que as características seriam diferentes. Por sua vez, os matizes da linha política da AP, em convergência com outras experiências, tenderiam a produzir movimentos com características diferentes.

Entretanto, os militantes da AP do Paraná cerraram fileiras, na virada da década, com os setores que, em nível nacional, passaram a questionar a linha da revolução camponesa. É fato que, por conta do recrusdescimento da repressão, a AP promoveu ampla transferência, de uma região para outra do País, de seus militantes. Isso implicou, evidentemente, nova descontinuidade em sua composição regional. Não obstante, ainda houve tentativas, em um primeiro momento, de colocar novamente em prática a linha camponesa. A ruptura com tal concepção, enfatizaram os depoimentos colhidos para a confecção da pesquisa, decorreu dos impasses verificados nas novas tentativas de implementá-la no contexto da região norte do Paraná, cujas transformações não podiam mais ser menosprezadas. Assumiu-se, então, a noção de que a revolução deveria ser imediatamente socialista.

Ainda que a nova posição superestimasse as possibilidades da revolução socialista naquela conjuntura, o dado qualitativo é que, no que se refere à organização regional da AP, a mudança de concepção sofreu a mediação da intervenção política em uma realidade concreta.

(*) Reginaldo Benedito Dias é professor de História da UEM

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